Nory te representa? Com sua trajetória de dificuldades, devaneios e ocaso na pandemia, seu perfil deve ser um pisca-pisca para profissionais de marketing
lDa infância, a memória mais presente é o deslocamento de toda a família nordestina, de Cabrobó-PE para Cotia-SP. Em menos de um ano já arriscava a travessia da Raposo Tavares, para vender bananada em um posto cheio de caminhoneiros. Corria para o posto logo depois da aula, onde a professora o alcunhou de ‘cabeça de vento’, por ser tão serelepe e desatento. Seus colegas retrofitaram o apelido, para simplesmente Demente. Nos seus anos dourados, o rapazinho considerava pior ser Norivaldino. “Muito prazer, gata! O pessoal me chama de Demente”.
Agora na Barra Funda, a nova trajetória de Nori começa após o tempo de quartel. Vira-se com corretagens, tão variadas quanto capengas. Mete-se em transações tensas, de carros usados. Acusam-no, e muito, de trocar peças e pneus, antes da entrega. Pressionado pela mãe debilitada, para se empregar de carteira assinada, ele resolve sair do risco. É taxativo: “OK, mamãe. Estou saindo do mercado automotivo”.
Claudica em vários empregos formais. Do penúltimo sai ‘fulo da vida’ com o supervisor, que o ofende com uma alusão ilimitada: “O problema do Brasil é material humano”. Diz a si mesmo que o vento levou a mágoa. Jovem, ele lambe a ferida e tem seu momento Scarlet O’hara. Nunca passaria fome e humilhação.
Pouco antes da pandemia, já casado e pretensioso, Nori se julga um novo homem. Parece ascendente em uma Consultoria, associada a uma carteira de seguros. Na sala refrigerada, bem equipada, ele junta metas de apólices com outros três vendedores, na Alameda Santos, SP.
Por baixo traja roupas do Brás, encobertas por camisas e paletó em três vezes sem juros, da Faria Lima. Próximo de casa, quando o elogiam, a resposta sai como se estivesse no alto da Acrópole paulistana. “Aprenda, galera: a gente é o que veste!”.
Almoça – com parcimônia, a peso – no Buffet Jarra’s, um dos mais caros, com valet na porta. A onda não é para corretor. Mas ele tem suas artimanhas para atenuar o baque, no momento crucial de passar no caixa, com porção protocolar e um segredo. Bem, o segredo é uma barrinha de cereal, de mel e banana, que lacra o que resta da fome, logo na volta ao escritório.
Em casa, a mulher polemiza com perguntas venenosas: “Almoçar naquela granfinagem do Jarra’s?”; “Virou pequeno-burguês?”; “Pra quê ficar olhando a merda da cotação do dólar, Norivaldino Raimundo da Anunciação?”; Será que entre aqueles mauricinhos você diz que ‘cheguemos’ pra ficar, como me falou, quando me conheceu?” “E esse cartão aqui no bolso? Quer dizer que agora você é Nory, com ipsilone?..”
||| #FIQUE EM CASA!
lSim. Nory, com ‘y’. Karen está grávida, de seis meses. Em tom professoral, ele diz a ela que “o Jarra’s, eu já falei mas não adianta, o Jarra’s é tarefa de trabalho, porque é onde bons clientes almoçam e…conversam”. Sempre adiciona uma raquetada de superioridade: “Você querer entender esse circuito é como correr, antes de engatinhar”.
O Jarra’s simboliza um estúdio cinematográfico, onde Nory contracena com sua projeção na abundância. Sai elevado, disposto a dar autógrafo. Entrou lá a convite, no aniversário do chefe de Recursos Humanos, que bancou. Deu-se o prazer de voltar. Inebriado, assumiu a ousadia da rotina.
No dia a dia come a parca refeição em câmera lenta, enquanto olha as pessoas ao redor, e as imagina como clientes. Puxa conversa com um, dois, três e, por fim, certo dia emplaca uma venda. Exultante, até aplica um ‘migué’ no chefe, para um reforço do vale-refeição. “Eu como vendendo”, explica.
Os meses transcorrem, e Nory compra mais do que vende. Mais roupas. Mais sapatos. Mais vezes no Café Eldorado, na esquina da Augusta, outro point chic, onde se esquece que é corretor. Olha para a Bethania com vontade tão felina que transpassa o uniforme dela, a quem se reitera como líder de uma equipe numerosa.
Conseguiu até o zap da garota, com restrições de horários. Todo dia atualiza uma cantada, com coraçãozinho e seu habitual filete de esnobismo, em uma introdução intempestiva: “Olá! Você tem uma nova mensagem da Vice-Presidência”…como se a legenda fosse da própria caixa do aplicativo. Quer ter certeza que ela saiba com quem está falando. Após umas duas frases açucaradas, ele encerra com tópicos motivacionais, tipo “Para crescer, sempre trabalhe com foco e agilidade”.
Tal como os chefes de empresas de vários andares de sua torre, Nory gosta de sair mais tarde, e escapa do rush no Metrô, que pega na Trianon-Masp. No trajeto, sempre conversa sobre ser vice-presidente; e fala mal de quem sai no horário regulamentar. “Deu a hora, a macacada pula do galho”. Com requinte, sempre arremata: “Problema desse país é material humano!”.
Um amigo até comentou que, na faculdade retomada, Nory passou a ressaltar que já não suporta mais os familiares da Karen, que falam alto e gesticulam demais. Por isso, “eles seriam expulsos do Jarra’s, se um dia fossem almoçar lá”. Nory mal sabia que o silêncio prevaleceria, e ninguém falaria alto em nenhum restaurante, por um bom tempo. A pandemia aperta, e a empresa manda a fatídica hashtag a todos: #FiqueEmCasa!
O último dia no escritório trouxe angústia a Nory. Sozinho, em todo o conjunto de salas, ele tirou a máscara e foi à sala do vice-presidente. Sentou e passou em revista as divisórias, lâmpadas dos corredores apagadas, cadeiras vazias, cafeteira desligada. Como dublê de executivo, ele foi à sala ao lado, da secretária, e pronunciou o texto que guardava na ansiedade de um futuro de curto prazo:
– Mariana! Tá linda, hoje!..Vou almoçar.
E vai. O elevador lhe parece enorme. Na calçada, a angústia explode, até transtorná-lo. O Jarra’s está fechado. Desiste do almoço. Vai direto para o café, que Bethania lhe serviria, com olhar sexy. Contudo, na esquina a imagem é inacreditável. A Paulista deserta. Eldorado fechado. Surge um carro da CET. Incrédulo, Nory grita:
– Quem fechou o Jarra’s? Quem fechou o Eldorado? Quem fechou tudo? Quem deu o golpe?
– É o vírus! – respondeu um marronzinho, e ordenou: – Sai da rua. O Metrô já vai parar!..
||| REALIDADE SEM GRAVATA
lEm casa, o aperto continua. Nory se arruma e sai para o escritório, e só se convence da situação quando chega à portaria. Barra Funda toda fechada. Volta, apático. No almoço, ele acha mesa, talheres e todo o espaço estranhos.
– Querido, acooorda! O Jarra’s já era! Tudo já era! Vamos usar o teu vale-refeição no marcadinho, enquanto é tempo – gritava sua mulher, com barriga bem estufada.
Em home office, tal como no modo presencial, a venda não engrena. Karen faz uma lista e manda o marido ao mercadinho. Nory observa a falta de marcas que via no entorno da Alameda Santos e da Paulista. “Cacete! Na Barra Funda falta muita coisa, mas é tudo muito mais barato”, acredita. Ilusão. Em poucas semanas os preços sobem e os vales escasseiam, até o corte final. Antes de cair na real, ele quase cai em depressão.
Sem dinheiro, e amamentando a linda Kanory, mamãe Karen chama um primo, que tem um trailer de hambúrguer. Nory reluta, mas concorda em trabalhar no lanche, ou melhor, “em dar uma força”. Fica na ponta do balcão, do lado de fora, onde motoqueiros pegam as encomendas do delivery. Sugere trocar a pintura já descascada de ‘Toca do X-Tudo’ para ‘Food Truck Burger Artesanal’; e repensar todo o processo. “As coisas evoluem, e o 5G taí”, afirma, em tom de palestra. Resposta do primo é uma típica gargalhada, seguida da frase que o deixa tenso e regressivo:
– Mano, sai dessa onda de artesanal. E outra coisa, o que tem a porra do 5G com a carne dentro do pão? Aqui é realidade, sem gravata!.. A gente só quer foco e agilidade.
Podia piorar, e piorou. Não tem onde sentar, para jantar seu sanduíche. Sutil como um rinoceronte, o primo tosco repete bordões que deixam Nory com nojo existencial. “Come rápido. Chegou um viado de um cliente, foca nele. Se ficar devagar vai parecer demente. Aqui você vende comendo!”..